O olho do corvo

Aquele domingo de primavera prenunciou chuva desde a madrugada. As janelas batiam e os pássaros, em bandos, voavam em busca de abrigo.

Como de costume, esquentei a cambona d'água para uns mates e salguei com calma e esmero uma costela de boi, para o churrasco. Liguei o rádio, em volume baixo, para não acordar as crianças. Com uma peneira cheia de milho fui alimentar os insetos do terreiro, que já se reuniam, ávidos de fome.

Sentei-me numa pedra, debaixo da figueira e ouvindo uma chamarra de Dom Ortaça, tomei uns goles, repensando a vida. Hoje, faz 6 anos que me aposentei e comprei este sítio, aqui, perto do rio Ijuí, nestas Missões de jesuítas e guaranis, berço do gauchismo. Cultivo uma pequena área de terra e crio galinhas, porcos e coelhos. Quieto, sorvia o meu chimarrão, enquanto São Pedro desenhava nuvens escuras nas alturas e alguns rabiscos negros que grasnavam e voavam em círculos.

Uma gota d'água verteu de uma nuvem e atingiu em cheio o olho de um enorme corvo. Cobriu-lhe toda a retina e novamente caiu no vazio.

- Bueno, se eu ficar mateando na chuva, além de nunca terminar o meu chimarrão, ele vira tererê! Voltei ao rancho com uma certa angústia e senti vontade de comer aquela costela assim mesmo, sem assar.

Após o almoço, preparei uma dose de bebida e fui descansar um pouco. Os meteorologistas precisam descobrir a ligação que existe entre chuva e sono, pois é incrível como é bom dormir numa tarde chuvosa. Poucos minutos depois, comecei a sonhar sonhos fantásticos. Eu era uma enorme ave preta e estava de cócoras num galho de árvore. Era estranho como me aceitava naquela situação inusitada. Olhava ao longe, num vale de árvores gigantescas e, em uma ravina, sobre o riacho, havia uma nuvem baixa de brumas translúcidas. Comecei a bater as asas e alcei um voo tranquilo, como um viajante aéreo, acostumado a pegar correntes de ar e se orientar pelo instinto.

Acordei com imagens de lugares que não me lembrava de algum dia ter conhecido, mas que seria capaz de descrever com perfeição os mínimos detalhes. Fui lavar o rosto e notei que os pelos dos braços e o meu cabelo grisalho estavam com um tom mais escurecido. A vida no campo está me rejuvenescendo!

Peguei a ração dos coelhos e fui até as gaiolas, para os alimentar e conferir se os filhotes estavam vivos. Ao contá-los, senti uma vontade de devorar um láparo, só para sentir a maciez da carne e o prazer de rasgá-la com os próprios dentes. Do alto de uma uma árvore seca, um corvo me olhava, e, o meu cachorro saiu em disparada, afugentando um bando de galinhas que ciscavam no terreiro.

O chão, repleto de penas, lembrou-me de uma traça, que devorou alguns livros de poesia e certa noite - inspirada - escreveu pajadas de fazer Jaime Caetano Braun sentir inveja.

Pensei em dar um tiro naquele corvo, mas lembrei que não se deve atirar nesta ave de mau agouro. Entorta o cano da arma ou o atirador perde a pontaria e nunca mais acerta o alvo.

Entrei e fui assistir televisão. O Faustão dizendo palavrões de fazer vergonha ao próprio Bocage. Desliguei o aparelho, e, ao fechar os olhos, me senti voando num 'céu de Brigadeiro', sendo levado pela brisa mansa. Com uma visão privilegiada, avistava insetos e pequenos roedores que corriam no campo e se escondiam nos arbustos. Calma-brisa-vento... vento-brisa-calma...

-Tá dormindo no sofá!? Vai deitar na cama e para de beber! - gritou minha esposa - enquanto sacudia uma garrafa vazia, de whisky paraguaio, chamado: Ojo del Cuervo.

Clodinei Silveira Machado
silveiraselva@ibest.com.br
Santo Ângelo, RS



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